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Judiciário - Infinidade de recursos é 'brincadeira', diz promotor

Assessor da Procuradoria-Geral do Paraná avalia impacto da decisão do STF que permite prisão do réu condenado em segunda instância

Divulgação
"Para os sujeitos que têm um advogado constituído, e que faz o seu papel adequadamente, não existe justiça criminal, é uma brincadeira", lamenta o promotor Fábio André Guaragni

Considerada um paradoxo por advogados, especialmente os que atuam na área criminal, e comemorada por magistrados e promotores de Justiça, a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento de um habeas corpus na semana passada permite o início da execução penal após o processo tramitar no chamado duplo grau de jurisdição. Ou seja, o réu pode ser preso após ter a condenação confirmada no tribunal de segundo grau. Embora não seja inédito, pois antes de 2009 esse tipo de prisão era aceito, o entendimento do STF suscitou o debate sobre o trânsito em julgado da ação penal.
Em artigo publicado pela FOLHA (20/02/2016), o advogado Euro Bento Maciel Filho considerou que o STF cometeu uma "imensa contradição com a garantia constitucional" que trata da presunção de inocência de todos os cidadãos. No entanto, para o promotor de Justiça, Fábio André Guaragni, assessor criminal da Procuradoria-Geral de Justiça do Paraná, a possibilidade de apresentar inúmeros recursos aos tribunais superiores beneficia os réus com maior condição financeira e faz da justiça criminal "uma brincadeira", pois os processos acabam arquivados pela prescrição. Ele falou à reportagem sobre o tema e lembrou, inclusive, de casos nacionalmente conhecidos, como o do ex-senador Luiz Estevão, que mesmo condenado, manteve a liberdade com mais de 30 recursos para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e STF.

Antes de tratarmos especificamente da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o senhor poderia explicar como é o funcionamento do sistema penal?
Vamos imaginar um roubo acontecido em Londrina. Haverá a investigação, normalmente, por meio do inquérito policial e depois o Promotor de Justiça vai avaliar se deve levar o caso à Justiça com uma denúncia ou se vai arquivar. Se ele denuncia, começa a ação penal e o juiz sorteado vai conduzir o processo. Então, a defesa desse sujeito vai ser ouvida, ela vai contestar, vão ser ouvidas testemunhas arroladas pelo Ministério Público e pela defesa, alegações finais de ambas as partes e, no final dos testemunhos, será ouvido o próprio réu. Aí o juiz vai sentenciar, podendo tanto condenar como absolver. Na hora em que ele fizer isso, acabou o processo em primeiro grau. Quem se sentir desfavorecido, pode recorrer para tentar mudar a decisão no Tribunal de Justiça (TJ), segundo grau de jurisdição, onde são julgadas as apelações relativas às sentenças que foram dadas em primeiro grau. O primeiro grau e o segundo grau são as duas vias ordinárias, os locais onde se discute o caso penal.

Esse trâmite pelas duas instâncias constitui o duplo grau de jurisdição?
Sim, com a realização de tudo isso, está garantido o chamado duplo grau de jurisdição, que é a possibilidade que todo mundo tem como um direito, uma garantia de que a sua situação seja apreciada duas vezes pelo poder judiciário, de modo a eliminar a possibilidade de erro. Alguém condenado em primeiro grau pode ser absolvido em segundo. Está assegurado ao réu a garantia de um duplo grau de jurisdição. Essa garantia também é estendida ao Ministério Público (MP) na ampla defesa da sociedade. Isso é o que existe no mundo todo. A partir daí é normal, em todos os países do mundo, que se inicie a execução penal, tendo havido a confirmação da condenação no tribunal de segundo grau. Aliás no Brasil, também era possível e adequado isso até o ano de 2009. Os recursos do segundo para cima são raros, tanto que a gente chama o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o Supremo (Tribunal Federal) de instâncias raras. Tem dois recursos que, basicamente, podem ser manejados; um especial para o STJ e o extraordinário para o Supremo. Com o especial, você não discute mais provas ou fatos, mas sim se o direito que foi aplicado aos fatos foi adequado, porque pode ter havido uma violação do texto de lei. Por outro lado, se a parte acha que houve uma violação de um artigo da Constituição, aí a discussão é com o recurso extraordinário. Então, é como se o STJ fosse o guardião da legislação abaixo da Constituição, e o Supremo, o guardião da Constituição.

Os próprios tribunais de segundo grau, inclusive, podem barrar recursos para as instâncias superiores?
São bem restritas as possibilidades de recorrer ao STJ e ao Supremo, tanto que a maior parte dos recursos sequer vai ao Supremo. O próprio Tribunal de Justiça faz uma filtragem prévia e tranca a remessa de vários recursos porque eles não preenchem os requisitos. Não são apreciados no mérito, não são admitidos. Mas, veja aqui como as coisas começam a demorar. Quando esse recurso não é admitido, tem um outro recurso contra a não admissão, que é o agravo de instrumento. Aí, os juízes do STJ ou do Supremo são obrigados a analisar se vão receber e avaliar o recurso que foi trancado. Se mandarem subir o recurso, será perdido todo o tempo da análise do agravo e depois todo o tempo da análise do recurso, vai correr a prescrição e o sujeito que já foi condenado duas vezes segue sem cumprir a pena.

Apesar da polêmica agora, com a decisão do STF, até o ano de 2009 havia o entendimento de que o início da execução penal poderia ocorrer após a decisão de segundo grau?
Na época, o relator era o ministro Eros Grau, que virou a jurisprudência do Supremo. Até 2009, aplicavam o que diz a lei federal 8.038/1990, que diz que recursos para o Supremo e para o STJ não suspendem os efeitos da decisão corrida. Quer dizer que não tem efeito suspensivo, ou seja, todas as vezes que se entra com recurso especial contra uma decisão, os efeitos daquela decisão recorrida permanecem em vigor, surtindo consequências. A interpretação da lei era essa, nessas mesmas bases agora declaradas pelo Supremo.

Então, por que tanta polêmica agora?
Porque a Constituição tem uma disposição expressa no artigo 5º, a garantia de que se presume a inocência. Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado, que é uma categoria dogmática do processo penal e do processo civil. Ocorre quando uma decisão não comporta mais recursos, quando a parte perdeu prazo ou usou todos os recursos e perdeu. O Supremo considerou (em 2009) que para essa norma constitucional ser respeitada, era preciso esgotar todos os recursos. Ora, o que os advogados faziam? O cara era condenado em primeiro grau, advogados recorriam para o Tribunal de Justiça. O tribunal confirmava a condenação e, então, o advogado recorria para o STJ ou para o Supremo. Vamos supor que o recurso não fosse admitido, aí ele entrava com agravo. Se conseguisse liberar, o recurso subiria. Se ele perdesse de novo, entraria com embargo de declaração ou de divergência. A quantidade de peças recursais que se desenvolve junto ao STJ ou junto ao Supremo não se resume somente ao especial ou ao extraordinário. Vamos lembar do caso do Luiz Estevão (ex-senador, condenado a 25 anos de prisão pela Justiça Federal de São Paulo), que moveu mais de 30 recursos. Não tem cabimento isso. Você não pode ter um processo penal presidido, literalmente, pelo advogado. Então, se o Supremo teve lá atrás uma preocupação com a presunção de inocência até o trânsito em julgado, a decisão de 2009 acabou sendo bastante lesiva para a administração da justiça, porque criou a possibilidade de alguém, indefinidamente, ir criando expedientes recursais que podem ser repetidos. (O advogado) pode entrar com embargos de embargos, isso não está proibido, desde que o prazo seja cumprido. Não dá para esquecer que durante esse período a prescrição está correndo.

Aí estaria o principal problema, no mecanismo de prescrição no Brasil?
Existem países que trancam a contagem da prescrição durante a discussão recursal, mas o nosso sistema não é assim. Então, em muitas dessas situações o sujeito não usa os recursos porque acha que tem razão. O objetivo, na verdade, é levar para a prescrição. Nossa legislação facilita muito a ocorrência da prescrição criminal, aí está um problema sério. De repente, o Supremo forçou a interpretação do que é trânsito em julgado para contrabalançar isso, afinal o direito é feito de interpretação.

E geralmente, são os réus com muito dinheiro que conseguem empurrar o processo?
É evidente que para ter um empenho desse naipe no processo penal, ainda que as defensorias e os advogados nomeados gratuitamente façam trabalhos muito bons, é um advogado bem remunerado, cuidadoso com o seu cliente, que vai usar todas as possibilidades que existem, até porque faz parte da profissão dele. Isso acaba beneficiando os contratantes dos melhores advogados.

Existe alguma expectativa de acontecer, a partir de agora, uma enxurrada de pedidos por parte do MP para prisão de réus já condenados em segundo grau e que aguardam recursos em tribunais superiores?
Imagino que sim. A regra é para todos. Todos estão sujeitos à execução penal depois de uma condenação em segundo grau, mas temos que tomar cuidado com o seguinte; a posição do Supremo não é uma lei, nem foi uma decisão com repercussão geral. Foi um caso concreto, a discussão de um habeas corpus, e o Supremo nessa decisão voltou a uma posição anterior, que já vigorava até 2009. Os juízes não estão vinculados, continuam com a liberdade de adotar a posição superada, como aconteceu há alguns dias, logo depois da decisão do STF. Um político de alto cargo público na região norte do País foi preso e o TRF-1 cassou a determinação de prisão, porque não há uma obrigação para os juízes seguirem. No entanto, a interpretação que os ministros (do STF) dão está no topo da hierarquia e como as ações podem chegar nas instâncias superiores, é natural que os juízes de primeiro grau e segundo grau passem e a seguir esse entendimento.

A prisão depois da condenação de segundo grau não está agredindo o direito à presunção de inocência. Como fica esse direito?
O sujeito que não está sendo investigado por nada, tem higidez na sua presunção de inocência. Aquele que é investigado, continua com a sua inocência presumida, mas no momento em que o Ministério Público formula uma ação contra ele, essa posição se enfraquece um pouco. Na medida em que o primeiro grau o condena, se enfraquece mais. No momento em que o Tribunal de Justiça confirma, enfraquece ainda mais e isso vai dando espaços às medidas de exceção, como as prisões cautelares. Essas prisões sempre são exceções ao princípio da presunção da inocência, porque se você presume a inocência de modo absoluto, que lógica existe em prender cautelarmente alguém? São exceções que existem porque a posição de presunção de inocência se enfraqueceu, por uma série de razões. É evidente que a situação de presunção de inocência de um sujeito como o Luiz Estevão, que já usou mais de 30 expedientes recursais, que já foi condenado em primeiro grau, teve confirmada a condenação em segundo grau e em tribunais superiores, não é a mesma que a sua. Não se trata de violar a presunção de inocência, se trata de compreender que esse princípio tem núcleo inviolável, no entanto, a posição concreta do agente vai mostrando o enfraquecimento dele.

Qual interpretação devemos ter do trânsito em julgado. Não seria correto esperá-lo antes da execução da pena?
É tradicional dizer que trânsito em julgado é o esgotamento das esferas recursais. Mas eu posso entender, como o Supremo enxergou, que se trata do esgotamento das instâncias recursais ordinárias. Me parece que é possível isso, tanto que o texto da lei atribuiu aos recursos extraordinários e especiais apenas efeito suspensivo, ou seja, permite o início da execução.

Haverá, a partir de agora, agilidade aos processos e redução da sensação de impunidade?
Não vai haver o fim da impunidade nunca, porque onde existe norma, existe a violação da norma. Onde existe norma penal, existe a violação da norma penal e nem todas as violações são processadas e levadas à condenação. Então, sempre vai ter um campo da criminalidade que não é atingido. Isso tem nome na doutrina, que é a cifra negra da criminalidade. Agora, certamente, vai haver uma resposta que é muito diferente da atual, porque a sensação que a gente tem atualmente da justiça criminal é que ela simplesmente não existe. Para os sujeitos que têm um advogado constituído, com boa capacidade de trabalho e que faz o seu papel adequadamente, não existe justiça criminal, é uma brincadeira.

A revisão criminal é um recurso depois do trânsito em julgado?
Permite ao réu discutir a sua condenação depois do trânsito em julgado. São casos excepcionais, por exemplo, com prova nova ou expressa violação ao texto de lei, a mesma discussão que se faz no STJ. É movida depois de se esgotarem os recursos. É comum que o réu, depois do esgotamento, quando não tem mais como recorrer, se valha da revisão criminal. Não existe decisão da Justiça contra réu que nunca mais vai mudar. Nesse contexto, eu poderia inclusive, dizer que mesmo havendo um trânsito em julgado formal, o fato de existir a possibilidade de revisão faz com que materialmente, não exista um trânsito em julgado em plenitude. Então, quando é que eu poderia iniciar a execução e deixar de presumir inocência? Nunca. Ora, é do sistema que o sujeito inicie a execução penal de um processo e depois consiga a revisão criminal, evidenciando que não podia ser condenado. O que eu não posso é deixar de conceder a ele o duplo grau de jurisdição, a chance de revisar a primeira decisão em que foi condenado. Não se pode deixar de presumir, em regra, o sujeito como inocente e, portanto, responder livre ao processo penal. Mas esse princípio não é absoluto ao ponto de não poder ser matizado na interpretação em favor da proteção das vítimas do processo criminal, porque elas são tão cidadãs e carentes de proteção quanto o réu. O Supremo pensou nas vítimas.

Como essa nova interpretação do STF deve impactar o Ministério Público do Paraná?
É difícil dizer, porque cada Promotor de Justiça trabalha em um setor específico de atividade, não tenho números para te dizer quantas pessoas nesse momento têm condenação em primeiro grau, em segundo grau, e recorreram para Brasília. Somos quase em mil promotores aqui no Paraná e cada um está acompanhando de perto aquele seu caso.
Edson Ferreira
Reportagem Local
FOLHA DE LONDRINA
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