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Estudo quer dar visibilidade a mulheres e jovens do campo

Moradores do Eli Vive: escassez de políticas públicas incentiva trabalho coletivo


O IICA (Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura) irá realizar um estudo para levantar as principais reivindicações de mulheres e jovens do campo em países da América do Sul, América Central e Caribe. A intenção é que essas reivindicações possam ajudar os órgãos governamentais na formulação de políticas públicas específicas para os camponeses e, com isso, melhorar as condições de vida desse grupo e garantir a sua permanência no meio de origem. O estudo deve começar no segundo semestre de 2018 e a expectativa é obter as primeiras respostas em um período de seis a oito meses. A imersão na realidade de moradores do campo em regiões tão diversas será feita por meio de questionários, mas também de conversas com grupos de mulheres e jovens no ambiente em que vivem. No Brasil, a pesquisa será feita em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social.

"Essas pessoas são pouco escutadas, pouco olhadas. A gente sabe que existem, mas não sabe o que estão fazendo e do que estão precisando. Esse estudo é uma forma de ajudar os países membros do IICA a entender a problemática da mulher e da juventude rural e entender que são contingentes numerosos que merecem ser atendidos", explicou o assessor especial da diretoria-geral do instituto, Jorge Werthein.

O assentamento Eli Vive, por exemplo, legalizado em 2011 no distrito de Lerroville (zona sul de Londrina), reúne 501 famílias, somando mais de 3 mil pessoas. As áreas das antigas fazendas Guaravera e Pininga, onde hoje estão o Eli Vive 1 e 2, respectivamente, foram ocupadas em 2009 por integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e assim como já faziam desde o período em que viviam em barracas de lona, os assentados continuam conquistando tudo com o trabalho coletivo, em razão da escassez de políticas públicas que atendam a todas as necessidades da população. "Conseguimos a terra, mas só a terra não é suficiente. Tem a educação, a saúde, a alimentação. É muita coisa", disse Ivanete Galvão Adams Santos.

Ela mesma é um exemplo da dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Portadora de hepatite B, Santos faz acompanhamento médico constante e quatro vezes ao mês tem que se deslocar para a consulta médica e o retorno e para agendar e fazer os exames. A unidade básica de saúde mais próxima, em Lerroville, não está preparada para atender às necessidades da população do assentamento. "Pediatra também não tem. Quando os nossos filhos adoecem, fica complicado."

ESPECIFICIDADES
As políticas públicas desenvolvidas pelo Estado geralmente são pensadas para as zonas urbanas e nem sempre são as mais adequadas às necessidades das populações rurais. Entre os mais de 200 milhões de brasileiros, em torno de 84% deles vivem nas cidades e essa população majoritariamente urbana contribui para que as atividades, programas e ações governamentais não sejam planejados de acordo com as especificidades do meio rural. Um estudo realizado pelo Observatório sobre a Desproteção Social no Campo da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) mostrou que até recentemente alunos das escolas rurais não eram avaliados pelo Ministério da Educação e os agricultores só passaram a ter acesso aos programas habitacionais há dois anos.

Há que se considerar ainda a minoria dentro da minoria, que é a população de mulheres e jovens rurais. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 83,21 milhões de brasileiras vivem nas cidades enquanto 14,12 milhões delas residem no campo. Entre os jovens, são 7,6 milhões de pessoas de 15 a 29 anos de idade nas áreas rurais do País ante 43,7 milhões nas áreas urbanas. A pequena proporção de mulheres e jovens no campo pode explicar a invisibilidade dessa população nas estatísticas e nos programas sociais. "Temos que tentar atendê-los e chegar até eles. Deixar de ser invisíveis e tornarem-se visíveis", disse Werthein.

PARCERIAS
A lista dos países que serão objeto do estudo do IICA ainda não está fechada, mas é certo que, na América do Sul, o Brasil fará parte dela. Entre os países andinos, o Peru deverá integrar o estudo. Na América Central, os pesquisadores querem ouvir as populações rurais da Costa Rica e, se houver fôlego, do México, além de pelo menos dois países caribenhos. "Neste momento estamos formulando essa proposta e incorporando algumas parcerias nacionais e internacionais porque quanto mais instituições e mais gente se comprometer a entender e a dar uma solução para o problema, melhor. Ainda estamos definindo uma amostra de países", disse Werthein. No Brasil, devem ser selecionadas comunidades em um estado de cada região do País.

"Quando você vê qualquer país como um todo, você vê uma diferença em relação a gênero clara, marcante. Você coloca isso nas zonas rurais e percebe que se repete claramente. Quando você vê a situação da juventude, a nível nacional em qualquer país, é uma juventude postergada, com graves problemas, como exclusão educacional, exclusão laboral e violência, que afeta fundamentalmente essa parcela da população", destacou o assessor.

Ante a insuficiência de políticas públicas específicas para a população do campo, uma preocupação é o êxodo rural, especialmente entre o público jovem, que sem atrativos para se manter na zona rural sai em busca de oportunidades nos grandes centros urbanos e não raramente contribui para inchar ainda mais os bolsões de pobreza. "Olhar para essa população significa intentar que esse lugar que ela tem na zona rural seja melhorado, seja um lugar em que goste de ficar e que tenha as necessidades básicas atendidas", ressaltou Werthein.

Gina Mardones
Gina Mardones


Educação é principal reivindicação

No Eli Vive, no distrito de Lerroville, as escolas foram construídas pelos próprios assentados. Nos barracões de madeira funcionam a parte administrativa, o refeitório, os banheiros e as salas de aula. A partir do ano passado, o município assumiu a administração das duas escolas, no Eli Vive 1 e no Eli Vive 2, e os professores agora são da rede municipal de educação. No Eli Vive 1 também há uma escola estadual com turmas do quinto ano ao ensino médio. Mas ainda é pouco, afirmam os moradores do assentamento. "Queremos que a prefeitura construa um prédio para as escolas aqui", pleiteia Sandra Aparecida Costa Ferrer.

Também tem a falta de conservação das estradas, que prejudica o transporte e, por consequência, o funcionamento das escolas. "Às vezes, quando chove muito, os professores não vêm por causa das péssimas condições das estradas. E o transporte para levar as crianças das propriedades rurais até as escolas também é falho", comenta Ferrer.

A produtora rural Fátima Aparecida Neres, que vive em um sítio no patrimônio de Guairacá, também lamenta a falta de oportunidades na educação para os moradores da zona rural. Ela sempre viveu no campo e, quando criança, só conseguiu estudar até a quarta série do ensino fundamental por falta de escolas próximas. Concluiu os estudos, até o ensino médio, depois dos 40 anos de idade. "Foi difícil, ia a pé até (o distrito de) Paiquerê levando junto minha filha mais nova que estava no primeiro ano do ensino médio. Foi a oportunidade que tive", conta.

Para os filhos, Neres se queixa da dificuldade de acesso ao ensino superior. "Não melhorou muito. Meus sobrinhos de 18 e 19 anos trabalham na roça, fica muito difícil a oportunidade de ensino. Dos meus seis filhos, apenas um acabou de receber uma chance de entrar na faculdade. Ele mora em Paiquerê e eu falei para ele agarrar essa chance com fé e não desanimar e nem abandonar porque estudo faz muita falta. A dificuldade de transporte é o que mais atrapalha os jovens do campo irem para a faculdade. Se a gente correr atrás, até encontra uma faculdade de graça, mas se for para estudar à noite, vai ter dificuldade de chegar à universidade. E quando chove é mais difícil ainda porque a estrada fica ruim."

Diwzeffy Aparecido Silvério, 20, terminou o ensino médio na escola rural e não pensa em ir para a faculdade. O mais velho de três irmãos, Silvério trabalha no campo, ajudando a família no plantio e na colheita da produção. "Não temos o suficiente para viver dentro dos lotes. Faltam políticas públicas e a nossa luta é sempre a mesma. Os governantes prometem, a gente espera e não acontece", disse o rapaz. "Não é só roupa e calçado. A gente tem que ter uma alimentação saudável, estrada, escola e lazer, é uma grande dificuldade."

Michele Cristina Dias, 14, faz o nono ano na escola estadual do assentamento Eli Vive, mas já tem planos para quando concluir o ensino médio. "Quero fazer faculdade de medicina para poder retornar ao assentamento e ajudar a comunidade." A faculdade tornou-se um sonho possível para os assentados graças ao Pronema (Programa de Educação na Reforma Agrária). Com o programa social, mais de 30 moradores do Eli Vive concluíram o ensino superior na UEL (Universidade Estadual de Londrina). "Mas ainda há muito o que conquistar", diz Dias.

Formação para manutenção no campo

No Paraná, o Sistema Ocepar – que reúne três sociedades ligadas às cooperativas – trabalha na formação, promoção social, desenvolvimento e capacitação dos moradores do campo, em especial os jovens e mulheres. Para esta qualificação é levada em conta a característica de cada região e a cooperativa, além da faixa etária para qual se destina.

"Quando falamos no público jovem são questões que envolvem a liderança e oratória quando inicia o trabalho. Já quando está desenvolvendo há muito tempo, as formações são voltadas para a administração", explica Cristina Moreira, analista da Gerência de Desenvolvimento Cooperativista do Ocepar. "O jovem quer continuar no campo, pois está vendo que o progresso não está somente na cidade. O acesso ao conteúdo mudou e os treinamentos motivam. Atualmente eles se sentem motivados e têm orgulho de serem agricultores", aponta. Além disso, segundo a analista, o ensino para liderança tem conseguido a garantia para a sucessão e, por consequência, a continuação do cooperativismo.

"No caso das mulheres, muitas estão se desenvolvendo na área técnica e já temos registros de guias do campo especiais para a mulher", acrescenta. De acordo com Cristina Moreira, a partir dessas iniciativas o perfil de atuação na mulher no meio rural está se transformando, com um novo tipo de engajamento. "Por um longo tempo a mulher foi vista como aquela que tinha que ficar em casa e não poderia se envolver. Muitas, quando o esposo falecia e não tinham filhos, assumiam sem entender nada e acabavam arrendando o terreno. Então, se viu esta necessidade de dar capacitação e foram descobertas habilidades, que estão fazendo a administração da propriedade ser compartilhada com elas", destaca.

As formações são ministradas nas cooperativas por instrutores ou consultores contratados, que tenham habilitação, e pelos capacitadores do próprio sistema. A responsabilidade para novas práticas também é compartilhada com os participantes.

Se por um lado muitas pessoas ligadas ao campo encontrem oportunidades com essas atividades, por outro ainda existem aquelas que, sem a organização por meio de cooperativas, enfrentam dificuldades. Há uma década trabalhando em uma granja, Vanuza Gonçalves Goulart, 39, que mora no distrito de São Luiz, zona rural de Londrina, não pensa em se mudar, apesar dos desafios. "Nasci e me criei no campo. Como não tenho estudo, não vejo perspectiva de melhorar a vida na cidade. Já meu filho pensa em sair daqui. Falta maior incentivo e valorização, pois somos humildes, mas trabalhadores."

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Shutterstock - Projetos de intervenção no campo têm futuro, mas exigem perseverança e solidariedade, diz professora da UEL
Projetos de intervenção no campo têm futuro, mas exigem perseverança e solidariedade, diz professora da UEL


Responsabilidade não é só do poder público

O assessor especial da diretoria-geral do IICA(Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura), Jorge Werthein, defende que a responsabilidade de dar condições dignas e manter a população no campo não é apenas dos setores governamentais, mas de toda a sociedade. "O setor privado tem que ser corresponsável pela formulação e implementação de políticas públicas. Para ter uma ação eficiente, precisamos que o setor privado se associe. Se assim acontecer, vamos ter um impacto maior e toda a região onde essa população está morando vai melhorar e isso significa uma melhoria para o país como um todo", avalia.

"Os projetos de intervenção no campo têm futuro, exigem perseverança de quem está no campo e solidariedade de quem está na cidade", complementa a professora do Departamento de Geociências da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e coordenadora do projeto Sacolas Camponesas, Eliane Tomiasi Paulino.

As políticas públicas específicas para a população rural são poucas, concorda Paulino, mas ela chama a atenção para os avanços, como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), que são mecanismos criados para facilitar a entrada da produção dos pequenos agricultores no mercado, a preços que sejam compensadores para quem produz. "Dizer que as políticas públicas não funcionam é o primeiro passo para destruir o que já tem. E essas duas políticas (PAA e Pnae) fortaleceram o campesinato. Políticas públicas nós até temos, mas falta a execução dessas políticas em todos os municípios", afirmou a professora. "Mas nunca foi prioridade dos governos favorecer uma agricultura diversificada, como fazem os países desenvolvidos. A invisibilidade dos camponeses é parte de um projeto de um país que não olha para a diversidade. Não é um problema só do campo, mas de toda a sociedade."

A produtora Vera Lúcia Oliveira Santos viveu praticamente a vida toda no campo e na sua simplicidade, lembra o poder público de que o investimento na população rural só traz vantagens para os camponeses e para a sociedade como um todo. "Hoje se fala muito em crise, mas aqui no campo a gente sente menos a pancada. Plantamos o nosso alimento, temos água de mina, a conta de luz é rural, então é mais barata, e se o gás está muito caro, fazemos um fogão à lenha. Temos mais segurança nas nossas casas e somos unidos, mantemos os nossos filhos por perto e podemos cuidar para que fiquem longe das drogas. Na cidade tudo é comprado, tudo é caro e ninguém tem sossego porque a violência é muito grande. Já saí do campo e fui para a cidade, mas para lá não volto mais. Aqui é muito melhor", relata.

"O problema maior dos moradores do campo é que estão longe, não têm acessibilidade, não têm como pressionar o vereador, bater no gabinete do prefeito. Há um isolamento das decisões políticas muito grande, mas a despeito disso estão encontrando seu lugar no mundo", reflete Paulino.
Simoni Saris
Reportagem Local/FOLHA DE LONDRINA

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