Nos EUA, cidades com migrantes brasileiros e hispânicos têm 30% mais mortes por Covid-19
Falta de acesso à saúde, medo de deportação, ramos de atuação profissional e falta de segurança financeira explicam maior incidência de casos nesse grupo. |
"Era como se duas mãos fortes me apertassem com força o
peito, em direção às costas. Eu ia ficando fininha, fininha... O ar não passava
mais, eu não conseguia respirar", conta a mineira Luíza*, de 47 anos,
sobre os efeitos do coronavírus em seu corpo.
Luíza é faxineira no estado americano de Massachusetts e
desenvolveu os sintomas de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus —
febre, tosse, falta de ar, cansaço e dor de garganta — alguns dias depois de
ter limpado a casa de uma família americana em que todos estavam doentes.
"Quando saí de lá passei desinfetante no corpo todo e fui pedindo proteção
a Deus", conta.
A falta de ar e o cansaço, que começaram há quase duas semanas,
ainda persistem.
Luiza chegou aos Estados
Unidos há 16 anos, depois de atravessar a fronteira do país
com o México.
Desde então, jamais conseguiu regularizar sua situação — segue indocumentada, o
que a impede de receber seguro desemprego ou auxílio financeiro do governo
americano em meio à crise do coronavírus.
Por isso, e diante de uma redução de 70% em sua renda mensal,
que antes chegava a US$ 4 mil (R$ 21 mil), Luiza teve que seguir trabalhando,
apesar do medo de se contaminar. Não deu outra. Nem duas semanas depois que o
governo declarou quarentena em todo o estado de Massachusetts, ela adoeceu.
O caso de Luiza é exemplar do que
tem acontecido nos Estados Unidos, o novo epicentro global da pandemia, com
cerca de 700 mil casos e 36 mil mortes. O coronavírus não atinge a população
americana igualmente. Mais casos — e mais mortes — são registrados entre as
comunidades de migrantes da América Latina.
É o que mostra um levantamento sobre a epidemia feito pela BBC
News Brasil nos três Estados americanos que concentram em torno de 80% da
população brasileira no país, além de grande contingente de migrantes da
América Latina no geral: Nova York, Massachusetts e Flórida.
Quando analisados os municípios que abrigam mais latinos, os
números mostram que os habitantes dessas áreas tiveram entre 20% e 33% mais
chances de adoecer e de morrer, em relação aos números do estado como um todo.
Desigualdade na doença
A reportagem cruzou a base de dados de municípios onde viviam os
pacientes acometidos pela doença, compilada pelo jornal The New York Times a
partir das informações dos serviços de saúde, com as projeções do censo
americano de 2018 da distribuição populacional por raça e etnia nesses mesmos
municípios.
Enquanto no Estado de Nova York houve 52,4 casos de Covid-19
para cada mil habitantes, nos municípios com maior concentração de latinos
foram 66,2 casos por mil habitantes. Ou seja, nas áreas brasileiras e
hispânicas, os moradores tinham 25% mais chances de ficarem doentes. O mesmo
vale para mortes em Nova York, onde houve 1,1 mortes por mil habitantes. Nas
áreas latinas, o número sobe para 1,3.
Tendência semelhante acontece em Massachusetts. Enquanto o
cômputo na população geral é de 34,9 casos por mil pessoas, nos municípios com
mais latinos o número sobe para 46,5 por mil, isto é, uma taxa de adoecimento
mais de 30% maior. No mesmo Estado, a letalidade de moradores de municípios
latinos foi 25% maior. Na Flórida, onde a epidemia ainda é menos grave, com
10,6 doentes pra mil habitantes no geral, municípios latinos somam 13,7 por mil
e têm 50% mais mortes: 0,3 por mil contra 0,2 por mil no Estado.
Para começar: problemas na saúde
De acordo com os especialistas, a explicação para o fenômeno
está nas condições de vida e trabalho desses migrantes, que propiciam o
contágio e dificultam o acesso ao tratamento.
"Os migrantes latinos já
chegam nesta crise de saúde debilitados. Eles têm pouco acesso à saúde,
precisam dividir o aluguel e por isso moram em casas aglomeradas com muitas
pessoas, têm os trabalhos mais extenuantes e precários", afirmou à BBC
News Brasil Álvaro Lima, diretor de pesquisa da Agência de Planejamento e
Desenvolvimento de Boston.
De acordo com uma pesquisa de 2013 do centro de estudos The
Inter-American Dialogue, que se dedica a estudar questões sociais das Américas,
cerca de metade dos migrantes latinos vivendo nos Estados Unidos preferia se
automedicar a procurar ajuda clínica em caso de doença.
Parte disso se explica pela falta de convênio médico de muitos
deles. Ainda segundo o Inter-American Dialogue, 35% dos migrantes não têm
seguro de saúde — o índice é maior entre os indocumentados. Os Estados Unidos
não possuem um sistema universal público de saúde e o acesso a serviços médicos
é caro — uma consulta em um serviço de pronto atendimento pode custar alguns
milhares de dólares.
"Sem tratamento ou prevenção de doenças pré-existentes, o
coronavírus pode levar a quadros mais graves para migrantes latinos que não têm
recebido tratamento para hipertensão, diabetes ou outras doenças crônicas
comuns no grupo. Não apenas o custo da saúde, mas a retórica e as políticas
anti-imigrantes nos últimos anos impediram parte desse grupo de obter os
cuidados de saúde necessários", afirma Paul Fleming, professor da
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Michigan e especialista em temas
de saúde de latino-americanos.
Fleming se refere ao endurecimento das ações do ICE,
departamento americano de imigração e alfândega, que intensificou na gestão
Trump a busca por migrantes indocumentados. Muitos deles temem que, ao buscar
ajuda médica, possam ser denunciados pela equipe do hospital ou mesmo abordados
em uma batida do órgão na rua, o que os levaria à prisão e à deportação.
"A convergência da xenofobia e da Covid-19 levou a uma
escolha horrível para migrantes sem documentos: devo ou não sair das sombras?
Fazer o teste pode significar ser deportado. Ser tratado pode significar ser
deportado", resumiu Ibram X. Kendi, diretor do Centro de Pesquisa e
Políticas contra o Racismo da American University, em um artigo para a revista
The Atlantic.
Em Massachusetts, Luiza conta com um sistema básico de saúde,
oferecido pelo Estado, que fez o diagnóstico de Covid-19 quando os primeiros
sintomas apareceram. Quando o caso se agravou para a falta de ar, no entanto,
ela optou por não ir ao hospital. "Preferi ficar tratando em casa com
bastante chá, antitérmico e canja", conta.
Na cidade de Nova York, que sozinha responde por mais de 200 mil
casos da doença, a prefeitura reconheceu uma taxa alarmante: ali, um migrante
latino tem duas vezes mais chances de morrer de Covid-19 do que um branco.
"A verdade é que de muitas maneiras os efeitos negativos do coronavírus —
a dor e as mortes que ele causa — se relacionam com nossas profundas e antigas
disparidades no acesso à saúde", afirmou o prefeito de Nova York Bill de
Blasio, há uma semana.
Condições de trabalho arriscadas
Luiza afirma que assim que os sintomas e a quarentena acabarem,
estará disposta a voltar imediatamente às faxinas. "Algumas das minhas
patroas até me pagaram normalmente esse mês, mesmo que eu não tenha ido
trabalhar. Mas no mês de maio, não tem nada combinado. Se não trabalho, não
ganho. E tenho que mandar R$ 5 mil por mês pra pagar a faculdade de Odontologia
da minha filha no Brasil e ajudá-la a sobreviver", diz Luiza.
A situação dela é comum entre os migrantes. Suas principais
áreas de atuação (serviços, construção civil, transporte) foram as mais
afetadas pela crise. Sem muitas garantias ou reservas, eles tendem a tentar se
reencaixar no mercado de qualquer maneira, mesmo com a paralisação quase total
da economia.
"Se já não perderam o emprego imediatamente e ficaram sem
renda, eles são os trabalhadores da linha de frente: faxineiros, auxiliares de
enfermagem, trabalhadores dos supermercados, motoristas, entregadores de
delivery de restaurantes. Então é quase que apenas uma questão de tempo para
que eles se contaminem", avalia Lima.
No Queens, o bairro de Nova York mais afetado pela epidemia e um
dos redutos brasileiros na região, a baiana Elzir Ribeiro, de 58 anos, mantém
um restaurante de comida brasileira há 12 anos. Diante da epidemia, o
estabelecimento reduziu o atendimento a retiradas e entregas em domicílio. O
movimento caiu 80%. Na região, há quem atribua o alto grau de disseminação da
doença aos trens lotados da linha sete do metrô, que leva os moradores do
Queens até a ilha de Manhattan e era muito usado pelos trabalhadores brasileiros
nos horários de pico.
Elzir admite sentir medo de se contaminar, mas diz que fechar o
restaurante nunca foi uma opção para ela, que depende da renda do negócio para
se sustentar. Na tentativa de se proteger, novos procedimentos foram adotados:
ao lado da porta de entrada do restaurante há uma pia, com sabonete, e uma
caixa de luvas descartáveis. Todo cliente que entra tem que lavar as mãos e
colocar luvas antes de se aproximar do balcão para retirar sua comida.
"Até agora deu certo, não fiquei doente. Eu preciso do
restaurante para viver e prefiro andar com minhas próprias pernas do que pedir
ajuda ao governo", diz Elzir, que se naturalizou cidadã americana há quase
20 anos.
Onde se esconde a pandemia
Por enquanto, o governo americano não tem disponibilizado dados
nacionais que indiquem quais são os grupos raciais e étnicos mais atingidos
pela epidemia. De acordo com os especialistas, isso é um problema porque impede
que sejam formuladas políticas públicas específicas para conter o espalhamento
da doença em meio a essas comunidades.
As informações serão cruciais até mesmo para entender que partes
dos Estados poderão sair da quarentena e em que áreas pode ser necessário
aumentar restrições ou prover auxílio de saúde pública e de renda mais
intensos.
Cidades e estados têm começado a
tentar entender exatamente o perfil dos doentes por coronavírus. Pode ser um
trabalho desafiador, já que em muitos casos, como em Massachusetts, quase 40%
dos atendimentos feitos a pacientes de Covid-19 não registraram a raça ou etnia
dos atendidos.
"Nós sabemos que existem desigualdades significativas que
colocam nossa comunidade de imigrantes em maior risco de contrair coronavírus e
desenvolver formas graves da doença", reconheceu há uma semana o prefeito
de Boston, Marty Walsh, que resumiu: "Dados são uma informação crítica
para saber o impacto dessas desigualdades e para ajudar o público a entender o
vírus e seus riscos".
FONTE – GLOBO.COM
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