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Trump é alvo do segundo processo de impeachment


 A era de Donald Trump termina com o quarto impeachment na história dos Estados Unidos. O Congresso votou na quarta-feira a favor de julgar o presidente republicano por crime de “incitação à insurreição” após o violento ataque ao Capitólio feito por radicais atiçados por ele mesmo, há uma semana. Trump se transforma no primeiro mandatário submetido duas vezes a esse procedimento, mas, ao contrário do julgamento pelo escândalo da Ucrânia, esse caso ganhou apoios notáveis entre os republicanos. Dez republicanos se somaram na votação aos 222 democratas. Os outros 197 votaram contra. A adesão mostra que o partido do presidente e de Abraham Lincoln foi sacudido pelo dia em que o mundo viu o templo da democracia norte-americana ser atacado por uma turba.

Nesta quarta, o Capitólio parecia um edifício nobre ocupado pelo Exército em tempos de guerra. Uma imponente mobilização da Guarda Nacional por trás das altas grades de ferro marcam o amplo perímetro de segurança ao redor do complexo que abriga a Câmara de Representantes e o Senado. Dentro, centenas de militares dormiam sobre o chão de mármore, descansavam de seus turnos apoiados nas estátuas, comiam e conversavam entre eles pela ilustre rotunda da entrada, por todos os corredores e vestíbulos. Outros patrulhavam as labirínticas instalações.

Exatamente uma semana atrás, hordas de seguidores de Trump invadiram o local com desconcertante facilidade com o intuito de boicotar a certificação do democrata Joe Biden como vencedor das eleições presidenciais. Horas antes, Trump os havia encorajado a marchar ao lugar e lutar como “demônios” contra eleições que chamava, sem provas, de “roubadas”. Cinco pessoas morreram, entre elas um policial que foi agredido. A sessão das câmaras foi suspensa e retomada de noite. Já de madrugada, Biden foi confirmado como presidente eleito. Nunca em sua história recente os Estados Unidos haviam visto tão próximo o fantasma de um golpe. E nunca em sua história recente o Capitólio havia parecido um forte.

“Sabemos que sofremos uma insurreição que violou a santidade do Capitólio do povo e que tentou reverter a vontade devidamente registrada pelo povo americano”, disse a presidenta da Câmara de Representantes, a veterana democrata Nancy Pelosi, ao começar o debate sobre o impeachment no plenário. “E sabemos — continuou — que o presidente dos Estados Unidos incitou essa insurreição, essa rebelião armada contra nosso país. Deve sair. É um claro perigo ao país que todos amamos”.

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Pelosi, terceira autoridade da nação, citou um discurso de Abraham Lincoln de 1862 para pedir aos legisladores, democratas e republicanos, que cumpram com seu “dever patriótico no momento de uma crise decisiva ao povo norte-americano”. “Colegas do Congresso, compatriotas, não podemos escapar da história. Cumpramos com nosso dever e com nosso juramento e honremos a confiança de nossa nação”, enfatizou solenemente.

O Partido Republicano, que se tornou um bloco de apoio a Trump no impeachment de um ano atrás, entrou em uma fase de guerra de guerrilhas após o ataque ao Congresso. A congressista Liz Cheney, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney e a terceira republicana com mais peso na Câmara de Representantes, anunciou uma noite antes que votaria a favor de julgar Trump. Em um duro comunicado, Cheney concluiu que “nunca houve traição maior por parte de um presidente dos Estados Unidos”. No polo oposto do partido, Jim Jordan fez durante o debate uma intensa defesa de Trump, afirmando que tudo respondia a uma “obsessão” por derrubá-lo desde o primeiro dia, mas esse também não era o sentimento geral.

Ainda que a maior parte dos republicanos tenha votado contra o impeachment, poucos defenderam o magnata nova-iorquino. Foi significativa a postura do líder da minoria republicana na Câmara, o californiano Kevin McCarthy, que admitiu que Trump “tem culpa” do que aconteceu, mas considerou mais apropriado reagir com um “voto de censura” ao presidente e a criação de uma comissão de investigação, do que um julgamento político no Congresso “em tão pouco tempo”, sem a realização das pesquisas e audiências prévias.

Trump deixará de ser presidente em uma semana, em 20 de janeiro, quando Biden e a vice-presidenta, Kamala Harris, tomarem posse de seus cargos. Tudo o que cerca esse impeachment, por si só um mecanismo extraordinário, é excepcional. A fase na Câmara de Representantes foi à votação somente uma semana depois dos fatos, sem articular uma investigação prévia, depoimentos e testemunhas. O que no impeachment de um ano atrás, pelo escândalo na Ucrânia, levou por volta de três meses, dessa vez foi resolvido em alguns dias, principalmente porque os crimes atribuídos ao presidente desta vez foram cometidos aos olhos do mundo inteiro, em uma longa lista de mensagens públicas publicadas no Twitter e em discursos gravados e transmitidos ao vivo.

Agora o presidente já está formalmente acusado, mas não está claro quando Pelosi enviará o caso ao Senado, onde o julgamento propriamente dito será realizado e o veredito, votado. Mas como a Câmara Alta, em recesso, não retomará agora as sessões, é certo que o processo ocorrerá com Trump já fora da Casa Branca. Além disso, os próprios democratas pretendem adiá-lo durante semanas, até meses, para que a nova Administração de Biden possa iniciar sem obstáculos, uma vez que um Senado sobrecarregado por esse julgamento teria dificuldades até mesmo para confirmar os novos cargos do Governo democrata.

No Senado, o veredito de culpa não será simples, apesar da convulsão nacional, pois exige dois terços dos votos dos senadores. Democratas e republicanos estão empatados nas cadeiras (50-50) e os democratas necessitariam dos votos de até 17 membros do partido de Trump. Seu líder nesta Câmara, o senador Mitch McConnell, não falou publicamente, mas expressou sua satisfação com o processo como uma oportunidade de expurgar o partido da sombra de Trump, segundo fontes em seu entorno imediato citadas pelo The New York Times . Esta posição de quem foi o muro de contenção de Trump diante dos democratas no julgamento da Ucrânia explica o novo cenário que se abriu nos Estados Unidos em 6 de janeiro. De acordo com os assessores de McConnell, até uma dúzia de senadores poderia votar para condenar o mandatário. Mesmo assim, McConnell alertou nesta quarta-feira que não tem planos de avançar com a retomada das atividades no Senado para ativar o procedimento.

Se considerado culpado, os senadores poderiam votar para desqualificar, de maneira imediata, Trump de qualquer outro cargo público, o que acabaria com qualquer intenção de concorrer à presidência novamente em 2024, como o republicano sugeriu até agora. O julgamento em si também será, como defendem os democratas, uma forma de abrir um precedente e não permitir que a ação do presidente fique impune. Como alternativa ao impeachment, eles instaram o vice-presidente Mike Pence a remover o líder devido à incapacidade, invocando a 25ª Emenda à Constituição, mas Pence recusou.

Os Estados Unidos caminham assim para o seu quarto impeachment, um mecanismo extraordinário que os pais da Constituição criaram para poder condenar e destituir um presidente em caso de “traição, suborno, crimes ou contravenções graves”. O primeiro processo de deposição foi contra o presidente democrata Andrew Johnson (1868); o segundo, ao também democrata Bill Clinton, em 1998, e o terceira, ao próprio Trump, no início de 2020 por suas manobras com o governo de Kiev para “encontrar trapos sujos” dos Bidens [Trump pediu ao presidente da Ucrânia que divulgasse investigações sobre o filho de Joe Biden e outros democratas].

É um ataque direto à democracia que agora será julgado em Washington. Trump há anos alimentava dúvidas sobre a credibilidade do sistema eleitoral norte-americano, mas ao perder a reeleição contra Biden em 3 de novembro, tomou um caminho perigoso difundindo um arsenal de acusações falsas de fraude eleitoral, todas derrubadas pelos tribunais, pressionando os funcionários responsáveis e atiçando suas bases para protestar contra o que chamava de “roubo”. Na manhã do dia 6 de janeiro, chegou ao ápice pronunciando discursos como: “Depois disso, vamos descer caminhando ao Capitólio e vamos apoiar nossos corajosos senadores e congressistas”, disse Trump de manhã à multidão a que havia convocado diante da Casa Branca. “Não vamos encorajar muito alguns porque nunca recuperarão seu país com fraqueza, é preciso mostrar força e ser fortes”, afirmou.

Agora, o clima de desconfiança nos Estados Unidos é tamanho que o general Mark Milley e o restante dos chefes do Estado Maior Conjunto emitiram uma declaração na terça-feira para frisar que o Exército protegerá a Constituição dos Estados Unidos “contra qualquer inimigo interior” e que Joe Biden será o Comandante em Chefe a partir de 20 de janeiro. Trump, enquanto isso, isolado pela maior parte do establishment republicano durante seus últimos dias na Casa Branca, se dirigiu a seus seguidores através de um comunicado em que dizia: “Diante das informações sobre novas manifestações, peço para que não ocorra NADA de violência, NADA de quebrar a lei e NENHUM vandalismo”. “Peço a todos os norte-americanos que ajudem a diminuir as tensões e acalmar os ânimos”. Mensagem semelhante foi transmitida por meio de vídeo pelo perfil da Casa Branca no Twitter. É tarde, o presidente que brincava com fogo se despede novamente processado.

Adere a

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