Crianças aprendem melhor com menos tecnologia
Há mais de 20 anos nos EUA, psicopedagogo londrinense defende que o aprendizado de crianças mais jovens deve ser feito no ‘mundo real’

Luiz Felipe Ferraz leciona em uma escola pública dos EUA cuja linha pedagógica usa neurociência e arte a favor da educação
Aos 40 anos - sendo 27 deles morando nos Estados Unidos -, o professor londrinense Luiz Felipe Côrtes de Ferraz é um entusiasta quando o assunto é educação. Filho da professora de canto Walkyria Ferraz, 83 anos, recentemente ele esteve em Londrina por ocasião do aniversário da sua mãe e aproveitou para proferir duas palestras sobre neurociência, arte e educação, que foram abertas a educadores, pais e público em geral. Bacharel em psicologia infantil (o que no Brasil corresponderia a uma graduação em psicopedagogia), Ferraz também é mestre em educação e pedagogia pela Universidade Estadual da Califórnia, em Sacramento, cidade onde mora e leciona há mais de 20 anos.
Apaixonado por crianças "desde sempre", ele dá aulas para alunos da educação infantil até o ensino fundamental. Na escola pública em que trabalha (Escola Waldorf Alice Birney), que segue a linha da pedagogia Waldorf, desenvolvida na Alemanha pelo filósofo e educador austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), o londrinense acompanha a mesma turma do primeiro ao oitavo ano do ensino fundamental. A metodologia pedagógica Waldorf é utilizada em 63 escolas no Brasil.
Em suas aulas, Ferraz valoriza a música como instrumento fundamental de comunicação, principalmente na hora de integrar, dentro da proposta do programa de inclusão, alguns alunos autistas ou com outras "deficiências" que frequentam a escola regular (o professor é bastante cuidadoso na hora de "rotular" seus alunos). "Para mim, todos são crianças especiais, que merecem amor, respeito e estímulo para desenvolverem seus potenciais", afirma, em entrevista concedida à FOLHA.
Folha - Como o senhor definiria a experiência de trabalhar em uma escola Waldorf? É mais correto se referir ao Waldorf como pedagogia ou metodologia?
Felipe Ferraz - Eu diria que a Waldorf é uma filosofia, pedagogia e metodologia, e também se relaciona com outros campos, dos quais aprendemos à medida que crescemos dentro desta sabedoria maravilhosa. Outros campos a que Rudolf Steiner se voltou foram a sustentabilidade por meio da agricultura biodinâmica, finanças e aspectos sociais de transformação da humanidade.
Qual o papel da música na sua vida e de outras artes no seu dia a dia como professor?
Meu dia a dia começa com o café da manhã e pelo menos uma música que toco e canto com minha esposa, JoAnne Craig-Ferraz, também professora em escola pública. Quando chego na escola, cumprimento cada um de meus 31 alunos, e passamos a tocar flauta. Gosto de usar a música para nos recompor como um órgão só, composto de várias partes que trabalham juntas para o bem de todos. As crianças não só tocam o que lhes passo, mas têm a oportunidade de compor suas próprias melodias, às vezes acompanhadas de letra. É possível que aprendam sem a música, mas não de maneira melhor. Também perderíamos muito da alegria que expressamos diariamente, várias vezes ao dia. As crianças também, junto a mim, experienciam pintura, trabalho com barro, trabalhos manuais, como ponto de costura, orquestra e o espanhol como segundo idioma.
E os estudos na área de neurociência e neuroeducação? Surgiram como uma curiosidade a partir da sua formação como psicopedagogo ou era um requisito básico para dar aula em uma escola Waldorf?
Meu interesse na neuroeducação existiu sempre, de maneira moderada, até que comecei a trabalhar numa pré-escola na Califórnia, e comecei a ter contato diário com crianças com autismo. Minha fascinação aumentava com o triste diagnóstico à medida que via como as crianças se orientavam para a música. De certa forma, alguns pareciam ter sua vida otimizada pela música como se ela fosse um oxigênio enriquecido. Estabelecíamos contato visual e comunicação na presença da música ao vivo, de forma única, geralmente não obtida por outros meios.
Dentro da cultura brasileira, o senhor acha que a proposta Waldorf teria condições de se enquadrar de forma eficiente?
Em uma época quando parecemos estar cada vez menos presentes no aqui e no agora, a filosofia/pedagogia Waldorf seria uma ótima opção. Este trabalho necessitaria profunda mudança em vários setores, inclusive tecnológicos. Talvez as mudanças tenham que ser a passos pequenos, mas muitas vezes isso compromete a qualidade do programa. No caso da tecnologia, seria uma conscientização da diminuição de seu uso na educação das crianças mais jovens. Temos uma pressa muito grande para utilizar a televisão, tablets, e outros implementos tecnológicos com crianças pequenas, sem saber que não é a melhor coisa para elas. A criança jovem, de 0 a 7 anos seria mais bem servida com o aprendizado no mundo real, não virtual. O mundo real apresenta à criança o mundo em que vivemos.
Os meios virtuais, então, deveriam ser utilizados mais tarde?
Sim, é mais tarde que deveríamos usar os símbolos para representar o mundo, ou seja, apresentar de novo. Para que isso funcione bem, o aprendizado básico inicial deve ser feito com isso na mente. A criança jovem aprende de maneira sensorial e motora, ou seja, imersa nos sete sentidos e na manipulação dos objetos reais no espaço real. Os sete sentidos são a audição, olfato, paladar, tato, visão, propriocepção (sensação do próprio corpo por através dos músculos, ossos, tendões), e o sentido gravitoceptor (principalmente localizado no ouvido interno, sensação do corpo no espaço, em equilíbrio e com as orientações de gravidade e levidade). Geralmente não pensamos muito sobre os últimos dois, a não ser que haja algum problema com eles.
O que é fundamental para ser um bom professor na sua opinião? E o que mais o encanta no seu trabalho?
Sempre achei que o relacionamento humano é a mais importante dimensão na educação. Todo aluno só pode aprender quando se sente seguro e respeitado como um indivíduo único que ele é. Somos o produto de nossa genética e de nosso ambiente. É por meio do ambiente educacional que podemos chegar às melhores versões de nós mesmos. Já o que mais me encanta hoje é ver meus alunos cantando um cânone em três partes, e observar o entusiasmo em seus rostos quando terminam. Às vezes, peço que uma destas crianças (a maioria tem 10 anos) se sente no meio do grupo de olhos fechados para saborear a harmonia que emerge das três partes. É um presente barato, sempre disponível, e feito pelas próprias crianças. A satisfação delas é imensa.
Tenho a impressão de que dentro da proposta Waldorf a autonomia das crianças é estimulada desde cedo. É isso mesmo? E quando chega a hora de irem estudar nas universidades convencionais, elas se adaptam sem grandes dificuldades?
Sim e não. Há momentos onde o programa acolhe a todos de forma a aprenderem juntos, de acordo com a ideia de que muitas generalizações podem ser feitas. Por exemplo, cantamos juntos sem querer sobressair aos outros. Trabalhamos de forma a facilitar o cumprir de uma tarefa, como limpar os pratos ou varrer o chão. Estas atividades básicas são comuns em escolas nos Estados Unidos, porque sabemos que são atividades relacionadas com nosso próprio bem-estar e com movimentos que ajudam na formação física de todos.
Um exemplo simples é a importância do movimento cruzado em repetição na atividade de se varrer o chão. Constantemente fazemos o movimento com os dois braços passando de um lado para o outro, rompendo a barreira invisível vertical em nossa frente. Para crianças que não romperam esta barreira, a leitura pode ser difícil. Há outros momentos onde as crianças podem escolher suas atividades. Em tudo na filosofia Waldorf há uma "respiração": se acabamos de fazer algo com muita energia e movimento, passamos em seguida a uma atividade mais sedentária, desta maneira oferecendo oportunidades para que todos aprendam a monitorar sua aprendizagem.
Um dos grandes desafios no Brasil é com referência a um maior investimento na educação e à valorização do professor. Comparando com a realidade americana, como o senhor vê esse quadro?
As escolas públicas pagam bem, e é possível viver de um salário de professor. Em minha casa são dois salários de professor e só um filho, porém, sua decisão de estudar fora da Califórnia nos custou muito. Tudo é relativo. O fato de se poder ir a uma universidade no Brasil sem o custo que temos lá é bastante atraente. Meu filho é um produto da escola onde eu trabalho, e terá sua formatura em Design Industrial pela Universidade de Iowa, em Ames, agora em maio deste ano.
Apaixonado por crianças "desde sempre", ele dá aulas para alunos da educação infantil até o ensino fundamental. Na escola pública em que trabalha (Escola Waldorf Alice Birney), que segue a linha da pedagogia Waldorf, desenvolvida na Alemanha pelo filósofo e educador austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), o londrinense acompanha a mesma turma do primeiro ao oitavo ano do ensino fundamental. A metodologia pedagógica Waldorf é utilizada em 63 escolas no Brasil.
Em suas aulas, Ferraz valoriza a música como instrumento fundamental de comunicação, principalmente na hora de integrar, dentro da proposta do programa de inclusão, alguns alunos autistas ou com outras "deficiências" que frequentam a escola regular (o professor é bastante cuidadoso na hora de "rotular" seus alunos). "Para mim, todos são crianças especiais, que merecem amor, respeito e estímulo para desenvolverem seus potenciais", afirma, em entrevista concedida à FOLHA.
Folha - Como o senhor definiria a experiência de trabalhar em uma escola Waldorf? É mais correto se referir ao Waldorf como pedagogia ou metodologia?
Felipe Ferraz - Eu diria que a Waldorf é uma filosofia, pedagogia e metodologia, e também se relaciona com outros campos, dos quais aprendemos à medida que crescemos dentro desta sabedoria maravilhosa. Outros campos a que Rudolf Steiner se voltou foram a sustentabilidade por meio da agricultura biodinâmica, finanças e aspectos sociais de transformação da humanidade.
Qual o papel da música na sua vida e de outras artes no seu dia a dia como professor?
Meu dia a dia começa com o café da manhã e pelo menos uma música que toco e canto com minha esposa, JoAnne Craig-Ferraz, também professora em escola pública. Quando chego na escola, cumprimento cada um de meus 31 alunos, e passamos a tocar flauta. Gosto de usar a música para nos recompor como um órgão só, composto de várias partes que trabalham juntas para o bem de todos. As crianças não só tocam o que lhes passo, mas têm a oportunidade de compor suas próprias melodias, às vezes acompanhadas de letra. É possível que aprendam sem a música, mas não de maneira melhor. Também perderíamos muito da alegria que expressamos diariamente, várias vezes ao dia. As crianças também, junto a mim, experienciam pintura, trabalho com barro, trabalhos manuais, como ponto de costura, orquestra e o espanhol como segundo idioma.
E os estudos na área de neurociência e neuroeducação? Surgiram como uma curiosidade a partir da sua formação como psicopedagogo ou era um requisito básico para dar aula em uma escola Waldorf?
Meu interesse na neuroeducação existiu sempre, de maneira moderada, até que comecei a trabalhar numa pré-escola na Califórnia, e comecei a ter contato diário com crianças com autismo. Minha fascinação aumentava com o triste diagnóstico à medida que via como as crianças se orientavam para a música. De certa forma, alguns pareciam ter sua vida otimizada pela música como se ela fosse um oxigênio enriquecido. Estabelecíamos contato visual e comunicação na presença da música ao vivo, de forma única, geralmente não obtida por outros meios.
Dentro da cultura brasileira, o senhor acha que a proposta Waldorf teria condições de se enquadrar de forma eficiente?
Em uma época quando parecemos estar cada vez menos presentes no aqui e no agora, a filosofia/pedagogia Waldorf seria uma ótima opção. Este trabalho necessitaria profunda mudança em vários setores, inclusive tecnológicos. Talvez as mudanças tenham que ser a passos pequenos, mas muitas vezes isso compromete a qualidade do programa. No caso da tecnologia, seria uma conscientização da diminuição de seu uso na educação das crianças mais jovens. Temos uma pressa muito grande para utilizar a televisão, tablets, e outros implementos tecnológicos com crianças pequenas, sem saber que não é a melhor coisa para elas. A criança jovem, de 0 a 7 anos seria mais bem servida com o aprendizado no mundo real, não virtual. O mundo real apresenta à criança o mundo em que vivemos.
Os meios virtuais, então, deveriam ser utilizados mais tarde?
Sim, é mais tarde que deveríamos usar os símbolos para representar o mundo, ou seja, apresentar de novo. Para que isso funcione bem, o aprendizado básico inicial deve ser feito com isso na mente. A criança jovem aprende de maneira sensorial e motora, ou seja, imersa nos sete sentidos e na manipulação dos objetos reais no espaço real. Os sete sentidos são a audição, olfato, paladar, tato, visão, propriocepção (sensação do próprio corpo por através dos músculos, ossos, tendões), e o sentido gravitoceptor (principalmente localizado no ouvido interno, sensação do corpo no espaço, em equilíbrio e com as orientações de gravidade e levidade). Geralmente não pensamos muito sobre os últimos dois, a não ser que haja algum problema com eles.
O que é fundamental para ser um bom professor na sua opinião? E o que mais o encanta no seu trabalho?
Sempre achei que o relacionamento humano é a mais importante dimensão na educação. Todo aluno só pode aprender quando se sente seguro e respeitado como um indivíduo único que ele é. Somos o produto de nossa genética e de nosso ambiente. É por meio do ambiente educacional que podemos chegar às melhores versões de nós mesmos. Já o que mais me encanta hoje é ver meus alunos cantando um cânone em três partes, e observar o entusiasmo em seus rostos quando terminam. Às vezes, peço que uma destas crianças (a maioria tem 10 anos) se sente no meio do grupo de olhos fechados para saborear a harmonia que emerge das três partes. É um presente barato, sempre disponível, e feito pelas próprias crianças. A satisfação delas é imensa.
Tenho a impressão de que dentro da proposta Waldorf a autonomia das crianças é estimulada desde cedo. É isso mesmo? E quando chega a hora de irem estudar nas universidades convencionais, elas se adaptam sem grandes dificuldades?
Sim e não. Há momentos onde o programa acolhe a todos de forma a aprenderem juntos, de acordo com a ideia de que muitas generalizações podem ser feitas. Por exemplo, cantamos juntos sem querer sobressair aos outros. Trabalhamos de forma a facilitar o cumprir de uma tarefa, como limpar os pratos ou varrer o chão. Estas atividades básicas são comuns em escolas nos Estados Unidos, porque sabemos que são atividades relacionadas com nosso próprio bem-estar e com movimentos que ajudam na formação física de todos.
Um exemplo simples é a importância do movimento cruzado em repetição na atividade de se varrer o chão. Constantemente fazemos o movimento com os dois braços passando de um lado para o outro, rompendo a barreira invisível vertical em nossa frente. Para crianças que não romperam esta barreira, a leitura pode ser difícil. Há outros momentos onde as crianças podem escolher suas atividades. Em tudo na filosofia Waldorf há uma "respiração": se acabamos de fazer algo com muita energia e movimento, passamos em seguida a uma atividade mais sedentária, desta maneira oferecendo oportunidades para que todos aprendam a monitorar sua aprendizagem.
Um dos grandes desafios no Brasil é com referência a um maior investimento na educação e à valorização do professor. Comparando com a realidade americana, como o senhor vê esse quadro?
As escolas públicas pagam bem, e é possível viver de um salário de professor. Em minha casa são dois salários de professor e só um filho, porém, sua decisão de estudar fora da Califórnia nos custou muito. Tudo é relativo. O fato de se poder ir a uma universidade no Brasil sem o custo que temos lá é bastante atraente. Meu filho é um produto da escola onde eu trabalho, e terá sua formatura em Design Industrial pela Universidade de Iowa, em Ames, agora em maio deste ano.
Ana Paula Nascimento
Reportagem Local-FOLHA DE LONDRINA
Reportagem Local-FOLHA DE LONDRINA

