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A violência vai à escola

Alunos submetidos à realidade violenta reproduzem o que vivenciam nas escolas, nas quais o clima de insegurança também é constante afetando o desempenho dos alunos


Brincadeiras simulando armas ou abordagens policiais e perseguições entre "polícia e ladrão" fazem parte da rotina de muitas escolas localizadas em bairros com histórico de violência em Londrina. No pátio ou na sala de aula, crianças e adolescentes reproduzem comportamentos observados na própria comunidade e, muitas vezes, na própria casa. Educadores afirmam que a exposição à violência pode comprometer o rendimento escolar, o que acaba dificultando que estudantes em situação de vulnerabilidade superem essa realidade.
Pesquisa do IPEA divulgada no fim do ano passado confirma que a violência reflete negativamente no rendimento escolar. No Rio de Janeiro, onde foi realizado o estudo, as maiores incidências de homicídios aconteciam nos bairros mais pobres, em que estavam localizadas as piores escolas do estado. Já as menores incidências de homicídio aconteciam nos bairros mais ricos do município, em que estavam localizadas as melhores escolas. Na comparação entre os bairros mais e menos violentos, a taxa de reprovação foi de 9,5 vezes maior nos primeiros, ao passo em que a taxa de abandono e a taxa de distorção idade-série sejam também, respectivamente, 3,7 e 5,7 mais altas nas localidades mais violentas.
"A criança que nasce em um ambiente hostil, em que impera o desamor, e que não é estimulada e nem recebe uma supervisão adequada, terá maiores chances de desenvolver problemas cognitivos e emocionais. Uma possível consequência é o baixo aproveitamento escolar e o isolamento", afirma no relato o autor da pesquisa, Daniel Cerqueira.
No texto, ele lembra que, em relação a comportamentos violentos, além das características individuais associadas ao temperamento da criança, existem fatores ambientais que dizem respeito à relação da criança com os pais e familiares e com o ambiente externo ao domicílio.
Educadoras de escolas municipais de diferentes regiões de Londrina que estão inseridas em comunidades com histórico de violência avaliam que, entre os estudantes, a violência é naturalizada. "Os alunos apresentam muita agressividade e nem sempre conseguem resolver conflitos com conversa, o que acaba interferindo nas atividades em sala de aula", comentou uma delas. As servidoras municipais preferiram não se identificar para não estigmatizar as comunidades ondem trabalham.
Nas brincadeiras, elas relatam que as crianças reproduzem abordagens policiais e assumem até a postura corporal de pessoas que lidam com armas. Na hora de brincar com materiais de montar, como os "legos", as armas são os objetos preferidos para reproduzir.
Outra queixa é relativa às faltas, muitas vezes motivadas por ocorrências no bairro, como perseguições policiais ou até mesmo homicídios. "Elas faltam porque não querem ficar vulneráveis", conta outra educadora, destacando que, quando alguns alunos da escola percebem a presença da polícia, se desconcentram e não prestam mais atenção na aula. "Eles temem que possa acontecer algo com alguém que está em casa. Para essas crianças, a polícia nem sempre é sinônimo de proteção." Quando há casos de tiroteio na vizinhança, muitas crianças passam a noite sem dormir, o que reflete em falta de atenção no dia seguinte.

Gina Mardones
Gina Mardones - Um comportamento comum é a criança que vive em ambientes hostis se isolar e não se comunicar
Um comportamento comum é a criança que vive em ambientes hostis se isolar e não se comunicar


SEM APOIO 
Os alunos também são submetidos a outras violências, como negligência e miséria. "Falta apoio da família para realização das tarefas, por exemplo, o que prejudica o rendimento. Como elas nunca saem do bairro e não conhecem outras realidades, falta referência até para que tenham as experiências que ajudam a compor o ambiente alfabetizador", comentou a educadora, destacando que "a escola faz o que pode", mas falta mais apoio da família.
As escolas municipais investem no desenvolvimento de projetos para suprir essa lacuna. Em uma das instituições, a equipe está realizando passeios com os alunos pela cidade para que conheçam outras realidades e entendam que existem outras perspectivas de vida. "Muitos nunca foram ao cinema ou ao shopping", exemplifica. Outra experiência é a utilização de contos para incentivar a conversa sobre o tema. Ela relata que grande parte dos familiares não concluíram sequer a educação básica, o que dificulta o envolvimento dos pais na educação.
Uma das educadoras analisa que a violência cotidiana gera um estigma ruim sobre os bairros vulneráveis, afastando até mesmo profissionais que não querem assumir aulas e outras atividades nestas escolas. "Só conseguimos ter uma sala de reforço escolar há três anos. Antes, não tinha professor interessado em trabalhar aqui", lamenta. A decisão da Secretaria Municipal de Educação de colocar as escolas de bairros mais vulneráveis como prioridade na hora de contratar novos professores, segundo elas, reduziu esse problemas. "Acreditamos que poderia ter mais incentivos, como por exemplo o transporte até a escola, que fica em um bairro afastado", pede.
Diariamente, as educadoras destas instituições enfrentam o árduo desafio de encantar crianças em situação de violação de direitos básicos para a alfabetização e a aprendizagem de novos conteúdos. "Essas crianças já nascem fadadas ao fracasso. A gente tem que encorajá-las a acreditar que há outras perspectivas na vida."

Aprendizagem prejudicada
A exposição à violência reduz a capacidade de pensar, agir e se inserir no meio social, o que pode influenciar na aprendizagem das crianças. A constatação é da professora da Unopar Viviane Batista Carvalho, mestre em educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e que também atua na rede municipal de educação. "Violência gera violência, se a comunidade é violenta a criança vai reproduzir, o que gera agressividade e atrapalha o relacionamento dela com colegas e professores. Isso interfere na forma como age e pensa e como soluciona os problemas", explica. Outro comportamento comum é a criança que vive em ambientes hostis se isolar e não se comunicar. "Alguns alunos têm tanto medo que sequer perguntam quando têm dúvidas, por medo de uma bronca, por exemplo", diz.
A solução está no desenvolvimento de projetos para debater o problema junto à comunidade e às crianças. "Já vi crianças simularem um assassinato em uma brincadeira no pátio, inclusive com uma delas simulando a vítima deitada e os outros representando a polícia, o Samu... Nesses casos, é importante deixar eles brincarem para que entendam a própria realidade, mas paralelamente é preciso trabalhar o assunto", considera.
Ela citou o exemplo de uma escola que usou o conto "A Bela e a Fera" para debater diversidade. "A professora contou a história e depois conversou sobre o que fazer para não ser a Fera. Muitas crianças disseram que ser Fera é maltratar outras pessoas, então, a professora foi elencando o que eles poderiam fazer para não maltratar. Foi um projeto bem interessante porque atendeu a faixa etária da turma, composta por crianças pequenas", conta.
Viviane lembra que a violência mais comum no universo infantil é a negligência, o que envolve falta dos cuidados básicos para viver. "Já vi casos de alunos que vão para a escola sem comer e bebês que vão para a creche sem terem as fraldas trocadas, isso não é incomum. Tudo isso atrapalha o desenvolvimento e pode gerar déficit de aprendizagem", aponta.
Outra dica é que as escolas devem estar atentas para a negligência e intervirem para cessar a violência, seja conversando com os pais ou levando os casos para a ação social do município ou Conselho Tutelar.

BANALIZAÇÃO
O psicólogo Aurélio Melo, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, analisa que o maior problema da banalização da violência é que as crianças se acostumam a ela e passam a se identificar com esse comportamento.
Outro prejuízo é que a violência predispõe as crianças a crescerem com medo. "Isso gera a sensação de perda da liberdade e que não se pode confiar no outro", opina. O problema, segundo ele, é que em uma sociedade em que ninguém confia em ninguém, as pessoas se tornam mais intolerantes e defensivas. "Individualmente, uma criança medrosa pode ficar apática, indiferente e desinteressada pelo mundo e pela escola", comenta.
Para o psicólogo, a escola que lida com alunos em situação de violência deve praticar o acolhimento, promovendo confiança e segurança. "É importante mostrar que o outro nem sempre é ruim e que a escola é um lugar seguro e acolhedor", orienta.

Miséria predispõe ao problema 
Em uma escola estadual na Zona Leste de Londrina, a miséria está diretamente ligada à violência que permeia a comunidade e interfere no rendimento escolar dos alunos. "Mais de 50% dos alunos vivem com bolsa família e somos uma das escolas que mais faz entregas pelo programa Leite das Crianças", observa a diretora Aracelle Motta.
Entre a comunidade escolar, a exposição constante à violência fica evidente no medo. "Temos mães que não vêm às reuniões por medo de sair à noite e muitas faltas de estudantes que não podem se arriscar a sair sozinhos quando tem algum conflito no bairro", relata ela.
Uma das ações para diminuir o problema foi o desenvolvimento de projetos que aproximam escola e comunidade. Esportes, artesanato e informática passaram a ser oferecidos para a vizinhança, o que provocou a valorização do ambiente escolar e praticamente acabou com os conflitos dentro da instituição. A violência social, que se traduz na falta de alimentos e cuidados básicos, também influencia negativamente a aprendizagem. "Em uma casa onde sequer tem gás para cozinhar, a criança não consegue se desenvolver", lamenta, lembrando que as condições sociais não impedem que haja muitas histórias de superação.
É o caso da aluna Maria (nome fictício), 14 anos e que cursa o nono ano na instituição. Aos 2 anos, ela perdeu a mãe, que foi assassinada por uma bala perdida. As adversidades da vida, porém, não a impediram ser uma excelente aluna, dedicada aos estudos e educada com professores e colegas. "Minha mãe morreu grávida e desde então eu moro com meu pai e minha avó, que foi quem me ensinou a me comportar e me dedicar à escola", conta.
Apesar da família prover os alicerces para que a adolescente se desenvolva, ela afirma que a violência na comunidade atrapalha. "Perto da minha casa há muita gente usando drogas ou bebendo, a movimentação não para. É difícil ser adolescente nestes lugares, não conseguimos nem fazer amizades", desabafa ela, que pretende fazer faculdade de pedagogia e um dia ser professora.
A professora Eronita Cardoso Oliveira, que também já dirigiu a escola, lembra que a instituição de ensino já enfrentou casos de violência até mesmo na sala de aula, mas que o trabalho intenso de esclarecimento dos familiares ajudou a melhorar a situação. "Instituições sociais e a igreja do bairro também aderiram à campanha, o que colaborou para cessar o problema dentro da escola", conta.
Ela percebe, entretanto, que a vida em um ambiente hostil impõe aos estudantes uma dificuldade para resolver conflitos de forma pacífica.
Racismo e preconceito por causa da condição social dos alunos são outras dificuldades a que são submetidos diariamente, assim como casos de familiares presos, abusos físicos e sexuais, convivência com cenas de crimes, violência doméstica e gravidez na adolescência. Diante da falta de experiências positivas, a professora percebe que muitos não conseguem sequer interpretar um texto porque não têm outras referências que permitam o aprendizado. A solução encontrada pela equipe docente para lidar com o problema é a abordagem afetiva, com carinho e acolhimento. "O aluno tende a responder de acordo com o jeito como é tratado. A afetividade é o que mais funciona", diz. (C.A.)
Carolina Avansini
Reportagem Local/FOLHA DE LONDRINA

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